domingo, 25 de dezembro de 2016

desabrocham murchas

saltar todas as listas como cavalos barreiras
e abrir este rectângulo cortado branco
e sujá-lo de regras de teclas descifradas
dizer que não fiz tudo o que me passou pela gana
que ficaram só esboçadas todas as cartas, os gestos,
os obrigadas, as desculpas, os barcos de papel com as palavras,
pôr as músicas, cantar, ler poemas, comprar bilhetes para longe,
soprar amor
essa coisa que nego e renego e só quero como qualquer pedra do chão
que  não sei fazer

saltar as listas e vir para aqui fazer mais uma vez o inútil
tentar o que mais uma vez não conseguirei
explicar que tinha tanta cor para pintar e sou sempre só um bloco cinzento
essa garganta que esconde o calado à força
essa prisão das paredes gélidas inflamadas
saber dizer a perda a incapacidade e as dores ridículas
saber dizer mas para quê
a vida fugiu-me e corre corre já não sei se a vejo ainda

mas será que existiram esses mundos subterrâneos de homens pequeninos
essa opália, essa liberdade de bater a porta de casa dos pais,
essa liberdade de ter amigos havia amigos? houve?
aquelas pedras do chão como a nossa alcatifa
aquelas ervas daninhas como as nossas plantas
aquelas canetas e isqueiros como oxitocinas de utilidade pública
esta terra como a nossa casa e agora?

incomoda-me este silêncio
é bola preta que cresce como no miyazaki
até àquele tanque de preto a transbordar de borbulhas
e não quero ver a cena e fecho os olhos à cassandra
mas de que serve fechar-lhe os olhos

não sei o humano que parava os olhos nas coisas e nos outros
que queria ouvir-lhes as palavras
entender-lhes os tremores, as raivas, as maravilhas
acompanhar-lhe os pensamentos
desviar-lhes as rotas
sorrir como se fosse a primeira vez

o cenário e mundo inóspito vazio
os perdidos e não achados
o sem sentido de tudo isto
o cansaço de sísifo
o dramático
a farsa
(e o minúsculo) não

enquanto
os écrãs com novos donos de scoobydoos de caleiras sobre as orelhas
a cantar músicas de natal congregadoras da farsa
em competição
continuam para sempre ligados eternamente ligados
com as pilhas duracel
e duram e duram e duram
as baratas

sexta-feira, 30 de setembro de 2016

adenda fim do dia

Nunca quem dera jamais parar de escrever, sempre no seguimento da linha e fugindo a todo o direito. Indo para letras. Do outro lado do relvado.
Nada me disse o outro lado do relvado quando o hoje era baço e pintar era mais operário do que escrever, ler era mais operário do que ditar leis.
Desisto do carvão. Apago luzes. Dispo-me para um dia que me obrigará a vestir-me.
Só enfim. Sem nada. Com tudo. Com o tudo que não me deixa. Deixa-me não que tudo o com.

quarta-feira, 28 de setembro de 2016

Varfarina de amêndoa

Varfarina de amêndoa
antera e borbórea
relenta de séries bastantes
assente em bicos micos
e pastos assados
sedenta de gamos

Assombreada e solarina
estende o braço rumo
curando pregos
e estívias
e segue o sono rulante
em vez do açor

Basta que masta açougue
relíquia de quília sebanta
logo o colo pinta manta
e antera e borbórea
a varfarina de amêndoa
sermina, cortina e diz

sexta-feira, 23 de setembro de 2016

imitose

disto

deixem-me outra vez respirar a escrever
garras que desprendem garças impávidas
geradoras da mais rouge raiva ao mata à rabia
imagens chatas de cheias de pintinhas linhas tracinhos
confetti de lixo desnecessário tudo fora do armário
berloques cinzentismos cactos embalsamados
que bolha que saco que sarna na perna cruzada
voltar à pasta de papel com penas de pistacho
rir sem querer pela página abaixo e desmanchar
roubar este tempo só para só tempo este roubar
a braços irritados de arrancar ervas daninhas
sonhar as noites quentes a cidade ainda nossa
dar forma à fossa à impossível ponta de ar aqui
murguriar burtir-se sarracer ampinigar

quinta-feira, 22 de setembro de 2016

liberdade

A menina pires passou anteontem no Bairro Alto, na Travessa André Valente, e pelo cheiro a escape suspeitou que naquela ruela tinha nascido um grande poeta. Nessa tarde, descobriu na internet que era mesmo assim: Bocage ali à luz foi dado.
Então a menina pôs-se a ler e a pensar em belas ideias: Bocage esteve preso vários anos pela Inquisição, mas os seus versos, esses, ninguém os pode prender.

"Liberdade querida, e suspirada, 

Que o despotismo acérrimo condena; 

Liberdade, a meus olhos mais serena

Que o sereno clarão da madrugada:

Atende à minha voz, que geme e brada

Por ver-te, por gozar-te a face amena; 

Liberdade gentil, desterra a pena 

Em que esta alma infeliz jaz sepultada.

Vem, oh deusa imortal, vem, maravilha,

Vem, oh consolação da humanidade,

Cujo semblante mais do que os astros brilha:

Vem, solta-me o grilhão de adversidade;

Dos céus descende, pois dos céus és filha, 

Mãe dos prazeres, doce Liberdade!"

Fechou o livro de sonetos, e decidiu que ia ser livre. E pensou que ser livre incluía fazer escolhas, decidir e fazer, errar e acertar, pois o deixa-andar não faz pessoas livres e a liberdade não descende dos céus (aqui discordando ligeiramente com o poeta). Como o tema era vasto, ficou por aqui e foi beber um chá (que é um excitante barato), lembrando-se daquela rua e do cheiro a parque de estacionamento automóvel.


terça-feira, 6 de setembro de 2016

domingo, 4 de setembro de 2016

sem mexer uma palha

"depois de comer
nem um sobrescrito ler"

então a silhueta foi dormir a sesta
e a menina ficou acordada
sem mexer uma palha

"se é que isso é possível",
ficou ela a pensar para consigo
sem nada fazer

segunda-feira, 8 de agosto de 2016

a via da arte sensível

com mãos nuas apesar daqueles dedos
na competição - que pena - endurecidos
porque o caminho da suavidade não chegou
e ainda não pode ser o nosso
(perdoem-nos vocês que serão ágeis
a derrubar com alavancas do futuro)
foi bonito aquele yuko ainda assim
que nos faz ver que o peso é leve e é possível
de cada vez fazer virar o equilíbrio
e não se trata bem de dar a outra face
mas fazer com os mais fracos outra força
que é capaz do movimento impossível


quinta-feira, 21 de julho de 2016

terça-feira, 12 de julho de 2016

Poema do poste com flores amarelas

Vieram os operários, puseram o poste de ferro na berma do passeio
e foram-se para voltar noutro dia.
O poste tinha sido pintado há pouco de verde
e quando lhe batia o sol rutilava como as escamas dos dragões.
Mesmo junto do poste, no passeio, havia uma árvore que dava flores amarelas,
e o vento fez cair algumas flores amarelas sobre o poste verde.
As pessoas que por ali passavam diziam “que chatice de poste”,
mas o poeta sorria para as flores amarelas.
António Gedeão

segunda-feira, 11 de julho de 2016

terça-feira, 28 de junho de 2016

terça-feira, 21 de junho de 2016

domingo, 19 de junho de 2016

n'oje

sarna
coxa
tu magreza
ossos restos
vida acesa em palavras fumo ossos bichinhos
impaciência, bichinhos
inconstância, a severos açores
argmassa do que resta
foi ruminado ruminamos estamos ainda aqui
restos de toques de garras
sentimos já para nada
ardilamos sempre sempre ao lado do
voo de esperança que não espera e perde
perdida
em lama de tempo imundo

encontro libertário de évora

sexta-feira, 17 de junho de 2016

A menina pires reescreveu um soneto ao jantar

Magoam-me de acusação e despedida

Magoam-me de acusação e despedida
como se todo o esforço dos meus braços
não fossem erros vossos, homens baços,
e a minha falta a tua, toda a vida.

Hei-de cantar-vos a revolta um dia, 
quando a noite que carrego for futuro
do sol que me esvazia como um furo, 
e chegar outra cidade menos fria. 

Entretanto, deixai que ache injusto: 
até que o furo feche e rache o busto, 
seja o álcool noutra mesa bem queimado. 

A minha cor é verde, a raiva sabe: 
que o combate dentro dela nunca acabe, 
e transborde até deixar de ser lixado. 


O original de Carlos de Oliveira:

Acusam-me de Mágoa e Desalento

Acusam-me de mágoa e desalento,
como se toda a pena dos meus versos
não fosse carne vossa, homens dispersos,
e a minha dor a tua, pensamento.

Hei-de cantar-vos a beleza um dia,
quando a luz que não nego abrir o escuro
da noite que nos cerca como um muro,
e chegares a teus reinos, alegria.

Entretanto, deixai que me não cale:
até que o muro fenda, a treva estale,
seja a tristeza o vinho da vingança.

A minha voz de morte é a voz da luta:
se quem confia a própria dor perscruta,
maior glória tem em ter esperança.

Carlos de Oliveira, in 'Mãe Pobre'

terça-feira, 10 de maio de 2016

fado amorrinhado

eu morro que na barriga
uma cócega de falta
até me fica uma volta
nos gestos até me fica

até me fica de falta
eu nos gestos na barriga
uma cócega de volta
e morro que até me fica

não leias isto

ir
não sei para onde ir

imagino-te
a ti

tu estarás noutro mundo
outro

não leias isto
não leias

A sombra fica

Há dias em que a sombra nos deixa e vai ver o rio. Outros em que fica parada
sem saber onde ir. À espera que a luz dê a sua volta. Hoje é um dia desses.

Sou eu que vou, e a sombra fica. Fica mal desenhada, porque a luz é muita mas indecisa. Fica espalhada na mesa e no chão, tristonha, junto ao caixote. Fica aqui, quieta, sobre um copo de café de plástico e um rascunho.

Eu vou, saio à procura do lugar impossível no mundo que amo e não me deixa amar. Hoje é desses dias, estúpidos dias sem noite, em que a sombra fica e eu vou.