sexta-feira, 30 de maio de 2008

Da capital

Lisboa, 15 de Janeiro
A ofensiva contra a subida de preços e falsificação de géneros alimentícios
O Tribunal Colectivo de Géneros Alimentícios julgou e condenou as seguintes firmas:
Gabriel Marques, rua do Sol ao Rato, 213, Lisboa, manteiga falsificada, 2.000 escudos de multa e respectivos adicionais; Luisa Alves Maia, de Vila da Feira, leite falsificado, 200 escudos de multa e adicionais; Manuel Herédia Baqueiro, estrada da Torre, farinha falsificada, 3.000$00; José Joaquim Dias Tavares, calçada do Jôgo da Pela, 14, abóbora e cereja com alumen, 2.500 escudos; Borges Gomes & Santos, L.da, rua da Beneficência, farinha imprópria, 500 escudos; Adelaide da (...) nho com excesso de acidez, 500 escudos; Gomes & Marques L.da, rua da Prata, 163, massa alimentícia imprópria, 200 escudos; Gualdino Pedroso de Lima, de Santo Tirso, azeite falsificado, 2.500 escudos; Manuel Bravo Borges, rua da Rasa, 295, café descafeinizado, 500 escudos; Sociedade Industrial Vitória, do (...) pes da Cruz e Manuel Silva Baptista, Maia, Pôrto, leite falsificado, respectivamente 1.000 e 1.500 escudos; Padaria Regina, do Pôrto, farinha falsificada, 1.00 escudos; Sociedade Avenida Café, rua Jardim do Regedor, conhaque de categoria inferior á do rótulo, 1.00 escudos e três meses de prisão, remíveis a dinheiro; José Luciano Correia Amaral, Coimbra, farinha falsificada, 1.500 escudos; Adelino José do Vale, Setubal, vinho impróprio para consumo, 3.256 escudos; Manuel Joaquim Pereira Braga, farinha falsificada, 500 escudos; Manuel João, do Pôrto, aguardente falsificada, 500 escudos.
O Primeiro de Janeiro, 16/1/1940, p. 4

terça-feira, 27 de maio de 2008

Teatros e Cinemas

- Um «assíduo leitor» do nosso jornal lembra a conveniência de as «matinées» teatrais começarem meia hora mais cedo, a fim de poderem assistir a elas as pessoas que da outra margem do Tejo se deslocam a Lisboa aos domingos, de modo a apanharem ainda o vapor de regresso.
- Conforme noticiámos, o actor Jean Sarment e sua esposa, a actriz Marguerite Valmond, encontram-se há dias no Estoril, onde contam demorar-se até à sua próxima partida para França. Jean Sarment anunciou que vai escrever uma peça, cuja acção se passa em Portugal e que se intitulará «Madame Estoril»

Diário de Lisboa, 29/2/1940, p. 9

segunda-feira, 26 de maio de 2008

A estrada do Outão continua a avançar para o mar

SETUBAL, 13 (Pelo telefone) - O troço da estrada do Outão, em frente de S. Braz, continua a deslocar-se de forma bastante acentuada. Tudo indica que ela tende a resvalar para a margem do Sado. O abatimento é cada vez maior. As fendas alargam-se em niveis diferentes que se contorcem cada vez mais.
Contam-se por milhares as pessoas que têm visitado o locar para ver o extranho fenomeno.
Diário de Lisboa, 13/2/1940, p. 2

sábado, 24 de maio de 2008

terça-feira, 20 de maio de 2008

a trama

a trama primeiro da primeira mãe, da origem do mundo, a trama da que trama a vida sentada, ao tear, esperando ou esquecendo o homem mas nunca esquecendo o dever de urdir
essa trama ficou com as dores nas voltas e entroncamentos da linha
a trama da vida de hoje, tramada, a trama das estradas, das ruas, dos caminhos de sinais de trânsito, luzes, pontes e loopings, das redes virtuais e das redes de pesca que cada vez mais apanham peixes petroleados
a trama dos sons, das notas que não se escrevem, dos ruídos, das frases e palavras que se misturam umas com as outras e se ligam e desligam enquanto andamos pela cidade
a trama da nossa cabeça
a nossa cabeça urde e desurde pensamentos, tece e destece ideias e ainda as remenda e ainda as rasga, e tem também nós tremendos lá dentro, alguns tão difíceis de desatar...
e ainda quando nos tramam, todos os dias a todos os minutos
quando eles nos tramam
e ainda da possibilidade que temos de tramá-los a eles
a trama cantaremos se a tanto nos ajudar o engenho e arte

quinta-feira, 15 de maio de 2008

Mary Pires

Mary, que estava semiadormecida, endireitou-se no acento do carro, olhou para a propriedade e viu as formas vagas de árvores baixas que voavam lá fora como grandes aves suaves; e mais além um céu nebuloso, semeado de estrelas. O cansaço relaxava-lhe os membros, acalmava-lhe os nervos. O estado de tensão em que passara os últimos mess trazia-lhe agora, como reacção, uma aquiescência entorpecida, um torpor que era quase indifirença. Pensou que, para variar, seria agradável viver de modo pacífico; não se tinha apercebido de como estava exausta depois de todos aqueles anos, sempre a postos para a exigência seguinte. Dizia a si própria, decidida a encarar os factos que ia «aproximar-se da natureza». Era uma frase que disfarçava o seu pouco amor às estepes. «Aproximar-se da natureza», o que, afinal, até era confirmado pelo suave sentimentalismo do tipo de livros que lia, era uma abstracção tranquilizadora. Quando trabalhava na cidade, muitas vezes, aos fins-de-semana, tinha ido fazer piqueniques com montes de gente nova, ficando todo o dia sentada à sombra sobre pedras quentes, ouvindo um gira-discos portátil a tocar música de dança americana, e nessas alturas também pensara que era «um aproximar-se da natureza». «Sabe bem sair da cidade, não é?», costumava dizer. Mas como acontece com a amioria das pessoas, as coisas que dizia não tinham a menor relação com as coisas que sentia: ficava sempre profundamente aliviada ao regressar à água fria e quente a sair por torneiras, às ruas e ao escritório.

Doris Lessing, A erva canta

A dream itself is but a shadow


The way the wind blows (no sentido em que sopra o vento)

The wind blows
the way the wind blows.
They are sitting
but they will go.
The wind blows
the way the wind blows.
They're the dull class
the beggars' shadows
and they sit
and they go.

They will go
the way the wind blows.

O vento sopra
no sentido em que sopra o vento.
Eles estão sentados
mas hão-de partir.
O vento sopra
no sentido em que sopra o vento.
São a chata classe
sombras de mendigos
e sentam-se
e vão.

Eles hão-de partir
no sentido em que sopra o vento.

(anónimo século XVII, tradução menina pires)

terça-feira, 13 de maio de 2008

No quintal

No quintal da minha avó havia: caracoletas, lagartixas, jarros, bichos da conta, uvas, que ela descascava para eu comer, um galo, uma capoeira vazia, muitas ervas daninhas, um tanque, bichos da conta e um muro donde se falava com a Isaura. E passavam gatos.

sexta-feira, 9 de maio de 2008

Tão longe, a guerra


No parque infantil aqui à frente
cai uma bomba indecente
Que sorte! Nem um puto escorregava
- o baloiço estava em obras há três anos
Estilhaços chegam aqui à janela.
Amanhã comentadores, mentiras belas:
«É preciso realismo, exterminar a compaixão»...

Para acertar manda-se mais um avião.

infância1985

Coisas miúdas aprendem cedo que a matéria é suja e perdem os amigos que se fizeram no chão.
As grandes cabeças em vôos com dores mandam lavar as patas.

randori dois

não sei como te chamas
não preciso
a perna varre-se hoje
pelo pé
eu deixo que o combate
fique escrito
detesto quando o passo
fica hirto
não sei como te chamas
quero o tenso
do braço que desenha
o meu kimono
a luta é leve e livre
- somos iguais
consensos, contratos,
compromissos,
derrubados pelo peso justo disso.

ele olha para o lago

ele olha para o lago
e vê um espelho
ele olha para um espelho
e vê que lhe falta um pêlo
ele olha para o pêlo
e vê a perda
ele olha para a perda
e vê a pedra
ele olha para a pedra
e atira ao lago
e parte-se o espelho
e cresce-lhe um pêlo
e olha para a mão
e já não tem a pedra

Grupo de sócios e amigos do Grémio Lisbonense apresenta queixa à IGAI relativamente à carga policial de dia 8 de Fevereiro

No dia 8 de Fevereiro de 2008, um grupo de sócios e simpatizantes do Grémio Lisbonense reuniu-se à frente do número 226 da rua dos Sapateiros para expressar o seu descontentamento pelo despejo desta instituição. A noite iria acabar com uma carga policial nas escadas e no átrio de entrada para o edifício. A comunicação oficial da PSP recusa ter havido má-conduta por parte dos agentes presentes, afirmando terem sido usados «meios coercivos necessários e adequados». No entanto, um grupo de mais de 30 pessoas presentes durante os acontecimentos coloca em causa esta avaliação, tendo-se juntado e apresentado queixa à Inspecção Geral da Administração Interna.


Juntamo-nos como um grupo de cidadãos independentes com interesse em que seja apurada a verdade e a responsabilidade sobre os incidentes desse dia. Alguns dos pontos principais da nossa queixa baseiam-se em:

1- uso injustificado da força na recepção aos manifestantes: alguns dos simpatizantes do Grémio foram agredidos com bastonadas ao aproximar-se da entrada da instituição, sem que alguma vez tivesse sido dada ordem de dispersão ou dito que os presentes estariam a incorrer em algum tipo de infracção; nenhum dos amigos e sócios do Grémio Lisbonense se encontrava armado ou constituía ameaça à integridade física dos agentes de autoridade presentes;

2- muitos dos agentes no local não se encontravam identificados e recusaram mesmo identificar-se quando, na sequência das agressões, tal lhes foi solicitado pelos presentes;

3- a actuação da polícia caracterizou-se por um inqualificável abuso da força e autoridade, tendo sido permanentemente preferido o recurso à força física e à violência perante cidadãos que, mesmo após as agressões por parte dos agentes, mantinham uma atitude apaziguadora, apelando sucessivamente à calma;

4- a carga policial foi feita sem pré-aviso, com muitos dos presentes ainda sentados nas escadas. A movimentação dos agentes colocou em causa a integridade física de todos os manifestantes que se encontravam no local. A sua acção foi pautada pela agressão gratuita, visto ter sido em muitos casos dirigida a manifestantes encurralados e aos quais era impedido pela própria polícia abandonar o local.
5- na sequência da acção polícial, vários dos manifestantes ficaram feridos, recorrendo a tratamento hospitalar.

Ao entregarmos formalmente a queixa à Inspecção Geral da Administração Interna (IGAI), colocámos à disposição desta provas físicas em defesa dos pontos anteriores, bem como vários testemunhos recolhidos nessa noite.

Esperamos que as averiguações ajudem a apurar a verdade sobre os factos, e mesmo a esclarecer algumas das afirmações contraditórias que têm vindo a ser publicitadas. Acreditamos que a acção policial foi desapropriada e perigosa para todos os que se encontravam no local, para além de ter sido pautada por um abuso de força que, infelizmente, tem vindo a ser imagem de marca das nossas forças policiais nos últimos anos, como vários relatórios comprovam.

Ignorar os factos ocorridos no dia 8 de Fevereiro pode apenas contribuir para um agravar da situação, dando aval à arbitrariedade e ao abuso da violência por parte das forças de segurança. A Administração Interna deve assumir as suas responsabilidades, evitando que Portugal continue na lista negra dos direitos humanos em vários relatórios internacionais.

terça-feira, 6 de maio de 2008

sábado, 3 de maio de 2008

Mulheres de Atenas

os discos
as músicas por coisas
inventam-se as coisas
as músicas depois passam
a sê-las

ficam saladas
e há a ordem das saladas
mas escrevem-se
listas e títulos
como se pudesse organizar-se

ouvem-se
na festa imaginada
que grita

por não ser marcada
não puxa
todos estes passos
e as músicas depois passam
para outros discos
só na cabeça

já não estávamos em Itália

e entretanto
eram horas de ser horas
de cantar
mas sozinho não se canta
sem guitarra sim
mas sozinho não

e entretanto
havia impaciência miudinha
de gentes carentes de net
de telemóveis
de tabaco
e que iam estragar a voz
assim

entretanto
já não estávamos em Itália
entretanto
tínhamos voltado
e queríamos sorrir para o lado
e acabávamos
a sorrir de lado

memórias do eixo norte/sul 2

eu era da cidade e fui ao campo.
na cidade acordava ao fim da manhã, mas no campo acordei muito cedo, saí da cama e sentei-me no meio do bosque.
e pronto. lá me deixei estar um bocadinho e fiquei muito espantada, como já sabia que as pessoas da cidade ficavam quando iam ao campo.
os pássaros faziam uma chinfrineira. cada um era diferente do outro. tudo misturado. diferentes ritmos e timbres. uns mais abaixo e outros mais acima.
e, por entre os quadrados de uma cerca que lá havia, uma aranha trabalhava meticulosamente na sua teia. eu, que era da cidade, consegui ficar minutos sem fim a olhar para ela. a ver cada nova linha, cada vez mais no centro.
quanto tempo vivia uma aranha? pensei que nem as pessoas do campo sabem isso. as aranhas estão sempre lá.
quanto tempo vivem os pássaros que migram? passam mais tempo na terra em que nascem ou naquela para onde vão? passam mais tempo a viajar? chegam a voltar à terra em que nasceram? os ninhos das andorinhas - que vejo na cidade - são ocupados pelas mesmas andorinhas no ano seguinte? ou são outras as andorinhas?