segunda-feira, 15 de outubro de 2012

Se eu fosse hipocondríaco

Estaria hoje com uma doença nova, muito rara
que me impediria de trabalhar no mesmo sentido
nestes dias obscuros
em que a opressão avança passo a passo.

Seria obrigado a um tratamento longo nos ares da praia
nos dias claros...

- Comece já.

O médico proibir-me-ia de aceitar ordens superiores
de ir tão cedo para o escritório
se fosse num escritório que eu trabalhasse
se eu não estivesse a enganar o desemprego com obras de burocracia
se eu não estivesse a enganar a preguiça com as tarefas longas
que provocam azia.

Claro que a doença exigiria
que eu fizesse de duas em duas horas
um descanso na rede
- assobie muita música, duas colheres de indisciplina
e banhos de piscina
quando a praia fechar, privatizada,
vá para o campo apanhar ar
leia à vontade
esqueça a literatura
e não cumpra nem as minhas prescrições, diria ele.

Procure a felicidade antes de deitar
e acorde para a saudar:
olá.

Se eu fosse hipocondríaco
teria essa doença de certeza e queixava-me muito a toda a gente
porque essa doença não me deixaria aceitar
as condições propostas pelos pulhas
as torturas ao mundo com agulhas
o incendiário da guerra seria desmentido com a mão fechada
desautorizaria os autores dos crimes maiores:
os que nos impedem de fazer o dia

sem as correias que prendem o pensamento à reverência.

Eu teria de cantar enquanto partilhava
o tempo e a ferramenta
enquanto fabricava uma máquina livre,
porque faz parte do tratamento de quem tem isso
fabricar qualquer coisa que nos ajude
no trabalho mais belo - derrubar as cadeias
e abrir de novo a mão depois de bem erguida a cabeça
o punho e a ponte levantada.

Essa doença rara far-me-ia amar ainda mais a liberdade
estaria convencido de ter a doença e então, preocupado, eu iria procurar
gente com os mesmos sintomas
gente que faz greve
gente que se bate
e não desiste de um amigo
gente que combate
e não desiste do que ama
gente livre
gente que não faz de séria.

Desconfiem dessa gente tão séria, disse-me a mulher -
- ela deve ter a doença rara que eu teria,
teria de certeza, se calhar até já tenho,
já me sinto adoentado com a doença rara que eu teria.






domingo, 14 de outubro de 2012

Se eu fosse uma secretária

pensavam pensavam
que estava com uma doencita
mas ele era náuseas, vómitos, diarreia, desconforto abdominal, dor, espasmos, tonturas, vertigens, sonolência, dor de cabeça, convulsões, disrupção dos sentidos de olfacto e paladar, fezes moles,  flatulência, anorexia, perturbações digestivas, reacções alérgicas, prurido, erupção cutânea, artralgia,  vaginite, trombocitopenia, anemia hemolítica, reduções ligeiras e transitórias do número de neutrófilos, agressão, agitação, ansiedade, nervosismo, despersonalização, delírio, parestesia, síncope, astenia, insónia, hiperactividade, lesões nos ouvidos,  audição debilitada, surdez, zunido nos ouvidos, palpitações, arritmia, taquicardia ventricular, obstipação, descoloração da língua, pancreatite, descoloração dos dentes, colite pseudomembranosa, hepatite, icterícia colestástica, necrose hepática, insuficiência hepática, edema angioneurótico, urticária, fotosensibilidade, reacções cutâneas graves, eritema multiforme, necrólise epidérmica tóxica, nefrite intersticial, insuficiência renal aguda, anafilaxia, astenia, candidíase e inflamação dos testamentos.

quinta-feira, 11 de outubro de 2012

Se eu fosse uma mesa

Se eu fosse uma mesa podia ter uma perna, duas pernas, três pernas ou quatro pernas. Se eu fosse uma mesa podia ser pesada de mármore, maciça de carvalho ou ter telhados de vidro. Podia ser desmontável ou não passar na porta. Podia ter bicos e lados e não deixar casar, ou ser redonda, ou ampliar. Se eu fosse uma mesa podia estar à janela ou fechada numa salinha interior, ou então podia ser uma mesa de jardim para jogar às cartas. Podia ser uma mesa para comer ou para escrever, ou então para as duas coisas, ou ser uma mesa de mistura. Podia ter um presidente ou lançarem-me pontos de ordem. Se eu fosse uma mesa tinha um lado vertical e um horizontal. Se eu fosse uma mesa tinha partes duras ou à pressão. Podia estar posta ou não. Se eu fosse uma mesa estava farta de cadeiras. Se eu fosse uma mesa não tinha nome e só os loucos falavam comigo. Se eu fosse uma mesa talvez juntasse o útil ao agradável. Podia ter manchas, pregos e cola, e pastilhas debaixo do tampo. Se eu fosse uma mesa não falava, mas podia ranger ou cair e podiam-me bater e lavar. Ainda não sei bem se gostava ou não de ser uma mesa.