terça-feira, 18 de agosto de 2015

defesa de Glenn Gould contra Sokolov

fui tirar os pontos
e fiquei com três buraquinhos
(ou serão seis?)
seja como for
desaparecerão quando a pele se encontrar
e eu com ela me encontrar
e for possível escrever

escrever por exemplo sobre a antítese entre Sokolov e Glenn Gould
para defender o segundo, é claro
que soube que a aura tinha caído
e entendeu que a gravação era um processo colectivo
e que se podia cortar e colar para a música chegar mais longe

antes do copypaste
depois da música concreta
e da fixação dos sons ser possível
relação dialética com a tecnologia
desenvolvendo uma nova técnica
isto é, uma relação nova entre os seres e os materiais
e entre os humanos
com a ferramenta que se interroga em acto
para não ser por ela dominado
a questão é política, portanto
porque a forma de construir e usar
é parte da transformação ou mais do mesmo
da justeza ou do engano
(e nada é só justo ou só engano
mas o pianista russo que diz que em arte
só tem valor o que não é reprodutível
está enganado)

e apesar de tudo escolhe-se
escolhe-se ainda o que é preciso,
o que a pele no outro deseja e escuta
e no terceiro buraquinho ama

opção difícil, armadilhada
- mas ou é isso, ou nada.

como são tolas as pessoas

1.
como são tolas as pessoas
que fazem crer às outras que são unas
e de fora parecem realmente
mas lá por dentro dilaceradas como tu
porque é raro encontrarem-se as coisas com as ideias
como dois amantes

e os dois lados de ser e não ser
e as vidas diferentes que vivemos
e que queríamos que fosse uma só
uma só
 
2.
e entretanto acção e sonho como irmãos
rompem diques ou então
acumulam energia como barragens
e fazem saltar até as pedras
que atingem os fantasmas levantados
e por eles passam como passam os passados repassados
pelos véus das aparências da história histérica
simplificada, porque o essencial não se conta
fica atrás, escondido
foi a dúvida
e o que sem querer recusaste
 
3.
já era tempo de te escrever outra vez
minha irmã
ou fazer aquele monte de canções desoladas
muito tristes e engraçadas
para crianças que entendam o que a vida pode ser
e mulheres e homens que não tenham desistido de sentir
a beleza da jangada e da casa lá em cima
contigo brincando na árvore e nas ameias
de um castelo inventado para ser atacado
e defendido dos brutamontes com armadilhas de piratas

ardilosa combatente
astuta coruja
silenciosa e nua
tu és bela e vermelha


à bengala

À bengala ele diz coisas baixinho que não se percebem bem
mas anda, parece, com agilidade, até. E depois de o ver perdi-o. Achei que estava no autocarro, sim era um autocarro e era amarelo, pelo menos parecia amarelo. Era, era. Amarelo, mas com publicidades, não se via bem lá para dentro. Podia ser um eléctrico. As portas abriram. Não, ele ia em pé, agarrado ao varão do autocarro, era um autocarro era. Ele murmurava palavras, pareciam palavras, eram de certeza, mas não se ouvia o que era, não se ouvia bem. Parecia ser uma bengala, mas depois estranhei, andar assim tão bem. Pode ser só de apoio. Ele se calhar caíu, partiu uma perna e agora só tem medo. É um apoio, ele andava bem, até muito bem, pareceu-me. Não coxeava. Saiu. Andava bem, sim, muito ágil. Tinha um chapéu, sim agora estou a lembrar-me do chapéu. Acinzentado? Sim, com uma risca, aquilo deve ter um nome, uma risca de chapéu com aba. Não era aba larga, era aba curta, pareceu-me aba curta, até tinha a aba levantada um pouco, de lado talvez, mas podia não ser de propósito, sim, tinha a aba levantada de lado. Sim, bengala tenho a certeza. Não sei se era fato. Era cinzento, o chapéu, sim, o chapéu era cinzento, disso tenho a certeza. Não era fato, era talvez uma camisola grossa avermelhada. Vermelho escuro, quase acastanhado, cor de tijolo escuro, não sei, mais vinho talvez. Não cambaleava, não, até andava bastante direito, sem ser demais. Não vi bem a cara. Era um homem, sim, não há dúvida. De sapatos, sim, vi a bengala castanha.

sem adjectivos

Desde que perdi o adjectivo que as coisas deixaram de ser. Agora perco-me nas ruas e vou sempre dar a casa magoando os dedos. Estou a falar a sério. Não é brincadeira nenhuma esta letra. É o raio posto na estátua, a queda dos astros. Gostava de ser como as pedras, ter tempo. Mas queria dormir menos do que os gatos. Sinto-me uma rocha de esferovite a perder nacos de razão com as formas da roda. Que calor. A minha réstia de procura não anula, não arrasa, não alisa o mundo em explicação e slogan. Tenho de resistir, mas também tenho de cantar o mundo e a possibilidade do encontro sem o jugo da pressa e da submissão. Nem tudo passa por eles. Senão, de que vale rir?