quinta-feira, 15 de maio de 2008

Mary Pires

Mary, que estava semiadormecida, endireitou-se no acento do carro, olhou para a propriedade e viu as formas vagas de árvores baixas que voavam lá fora como grandes aves suaves; e mais além um céu nebuloso, semeado de estrelas. O cansaço relaxava-lhe os membros, acalmava-lhe os nervos. O estado de tensão em que passara os últimos mess trazia-lhe agora, como reacção, uma aquiescência entorpecida, um torpor que era quase indifirença. Pensou que, para variar, seria agradável viver de modo pacífico; não se tinha apercebido de como estava exausta depois de todos aqueles anos, sempre a postos para a exigência seguinte. Dizia a si própria, decidida a encarar os factos que ia «aproximar-se da natureza». Era uma frase que disfarçava o seu pouco amor às estepes. «Aproximar-se da natureza», o que, afinal, até era confirmado pelo suave sentimentalismo do tipo de livros que lia, era uma abstracção tranquilizadora. Quando trabalhava na cidade, muitas vezes, aos fins-de-semana, tinha ido fazer piqueniques com montes de gente nova, ficando todo o dia sentada à sombra sobre pedras quentes, ouvindo um gira-discos portátil a tocar música de dança americana, e nessas alturas também pensara que era «um aproximar-se da natureza». «Sabe bem sair da cidade, não é?», costumava dizer. Mas como acontece com a amioria das pessoas, as coisas que dizia não tinham a menor relação com as coisas que sentia: ficava sempre profundamente aliviada ao regressar à água fria e quente a sair por torneiras, às ruas e ao escritório.

Doris Lessing, A erva canta

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