O Maçariku gostava de máquinas.
Máquinas de luz, de imagem, de som. Câmaras, projectores,
gravadores e até instrumentos musicais que não sabia tocar. Dava
aos amigos, mostrava, usava, trocava nas feiras. A feira da ladra de
Lisboa em primeiro lugar, claro. A feira já não será a mesma sem o
Maçariku, esse passador de coisas e de ideias. E as coisas para ele
não eram só objectos para coleccionar - tinham ideias lá dentro.
Trocar, passar, presentear. Traficante de sonhos e de objectos,
contrabandista de ferramentas de transformação para dar sentido a um mundo onde não
se pode passar sem um bocadinho de tristeza. Mas não é tristeza
para ficar parado. Pode ser uma caixinha de música para ajudar nos
combates.
Uma maneira de estar
O Maçariku ensinou de tudo a toda
gente. Mas ensina-se uma maneira de estar? Uma maneira de estar
intensamente na vida, sem separar acção e pensamento, sem desligar
as técnicas das ideias, sem opor a militância e o sonho, sem
apartar as pessoas e as máquinas, as crianças e os adultos, os vinhos e as letras, sem saber
afastar a cultura da política e amizade da luta. Saber fazer e dar
sentido a esse fazer. Contra o empobrecimento da vida, ele provocava.
Militante, mas antimilitarista (o "Tropa Não!"). Pela
diferença, anti-racista. Contra os chefes, antifascista. Pela igualdade, mas nunca a das paisagens
lisas, porque ele era adversário da "normalidade". Podia
dizer "o que tem de ser tem muita força", mas cinismo não,
cinismo nunca. Rugosas cidades de antagonismo e solidariedade, de
combates e passagens, de barricadas e revoluções, de amigos e de
toda a gente ainda por conhecer, de cafés e ruas, e ruas e ruas e
ruas. Lisboa, como a palma da sua mão.
Com o corpo todo
Rigorosamente desobediente, o Maçariku
falava uma língua só dele, cheia de interjeições, olhares,
esbracejares, esgares, gritos, uivos, sussurros. Ele gritava com o
corpo todo para nos acordar. Mas sussurrava as palavras mais
importantes. Não sabia esconder o seu olhar atento por detrás do
cabelo (que olhos bonitos!), nem a barba escondia o seu sorriso
aberto, desafio constante ao mundo tristonho.
Levanta a pedrinha
Antagonista revolucionário das opções
fechadas, das dominações fora e dentro da cabeça, dos caminhos
fáceis do marketing. Fazemos então muito mais, muito
mais transformador. E convidamos aqueles também, provocamos
aqueloutros também, vamos conhecer gente que faça. Que saiba fazer
porque vive. Que saiba pensar porque faz. "Levanta a pedrinha,
oooooo!..." Porque, para além da amizade, era a transformação
do mundo nas lutas da história o critério da sua indisciplinada
disciplina. Nas lutas grandes e pequenas. E as pequenas
são enormes, decisivas, entusiasmantes e belas.
Maçarico
Um pássaro das regiões costeiras? Um
jovem que ainda não sabe tudo? Uma ferramenta com chama? Sabe-se lá.
A gente só sabe que a sua última máquina parou - o coração. A
vida vai: "Bute, bute!"
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