domingo, 10 de agosto de 2014

Maçariku

 
Naquela altura eu não sabia bem se se dizia filmagem ou filmação. Eu votava BCG.
Tinha febre e fizemos o guião de um filme e nunca fizemos o filme.
Vontade sempre de dar tudo, promessas atrás de promessas, quem dá também tira.
A idade foi de ouro até chegar à prateleira.
Tira-me esse cabelo da frente dos olhos ternos, vivos, atira-o para o lado, andar gingão.
As mãos que se davam às conversas, aos cigarros, às máquinas de filmar, ao prego e aos ombros dos outros. Aos nossos ombros.
Murcham corações. Atordoam-se antenas.
À procura da vibração das cordas da tua voz, da voz, da voz, da tua voz de encher espaços. À procura, à procura, à procura. E a puta da vida que não se rebobina.
As feridas demasiado grandes de sangue encarnado vivo, a tua cor, o vermelho, o oito, a bola preta, as contas redondas, tudo apalavrado.
O homem dos sete instrumentos, o soldadinho, os artesãos e militantes e clandestinos, velhos, de rugas, dificuldade de andar, com quem querias aprender tudo, para quem olhavas com os tais ternos olhos. Mas só querias viver até aos cinquenta, tu, o pescador de mar e de lixo.
E os tantos que ensinavas ficam como, agora? As crianças que ainda não sabem nada, os adolescentes que precisam de desprezo, os atados que têm de se desatar para fazer alguma merda interessante deste mundo.
Emprestavas com um v na volta, de vítor. Do viriato que era chato. Da vida, tão alegre e destemida como outra coisa qualquer. Os beijos no sítio do costume, as voltas ao bilhar grande, ou então uma curva. A fita do vhs.
Dá-me medo de escrever, posso perder-te mais assim. Mas se não escrever?
Os olhos dos mais novos iguais aos dos mais velhos. E os dos gatos, dos cães, horas a brincar, anedotas, gozos, distribuidor de risos. Era uma vez um cão que só tinha três patas, ao fazer chichi, caiu.
Fazer quase tudo o que se quer como se quer. Queres apostar?
Pôr tudo a andar, construir coisas. Ser bastidores, estrutura, a força, a base, o motor. Pedir e forjar amor. Discutir e não ceder. Teimar com e sem razão, teimar sempre. Com quem se ama, sempre.
Acumular pó, máquinas, quadros e bocados de pedra ou de metal que ninguém sabe o que são. Espreitar de curiosidade, chamar um cúmplice, mais vivos os olhos, mãos a falar. Coleccionar de tudo. Dar e tirar, trocar. Fiar. Focar.
Dobrar combates com um isqueiro ou uma garrafa de cerveja. Despachar as coisas, meter as mãos, resolver. Sozinho e com outros. Não embirrar à partida, só embirrar depois e se. E se depois e se, embirrar tudo.
Fugirmos na lata do bora-bora, janela aberta, muito ventil, um jornal por dia, chupar gasolina para cozinhar o bacalhau. Estado espanhol, viagens, férias, praias, tendas, casas com vacas e moscas, canas de pesca, xadrez, rios e cidra e sacos-cama. Ou então vamos só aos caracóis.
Lisboa sem ti, a palma da tua mão, as pedras da calçada, os prédios, as pessoas a virar esquinas, faz isto sentido? Por onde respira?
E esta casa, e esta companheira de vida, e esta filha, e estes filhos todos, e estes manos todos e estes todos todos?
Apetece-nos murros contra muros até ver estrelas de cinco pontas.
Mas a gente vai continuar. É só ter a tua voz aqui na cabeça. E o que tem de ser tem muita força.

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