A minha mão é uma faca de aço na luz vermelha da sala acordada.
Dá de comer ao cuspir dos beiços o doce gelado,
provocante.
Sou pessoa toda diferente mas só mexo as orelhas.
Não fujo,
não paro,
não calo nem caio,
só limpo.
A minha mão na cadeira é uma faca de aço numa sala acordada.
Os pés não os vejo, tresvejo.
Uma tampa depressiva que não cala o assobio,
um chapéu cheio de pedras.
terça-feira, 26 de agosto de 2014
sexta-feira, 22 de agosto de 2014
prisão em si
O meu braço é uma colher de pau na sombra azul da cozinha adormecida.
Dá de beber ao sorver dos beiços o ácido abrasivo,
paralisante.
Sou pessoa toda igual mas só mexo os olhos.
Não articulo,
não ando,
não tujo nem mujo,
só sujo.
O meu braço na cama é uma colher de pau numa cozinha adormecida.
A cabeça não a vejo, tresvejo.
Uma panela de pressão já sem fôlego pró assobio,
uma lata cheia de sopa.
Dá de beber ao sorver dos beiços o ácido abrasivo,
paralisante.
Sou pessoa toda igual mas só mexo os olhos.
Não articulo,
não ando,
não tujo nem mujo,
só sujo.
O meu braço na cama é uma colher de pau numa cozinha adormecida.
A cabeça não a vejo, tresvejo.
Uma panela de pressão já sem fôlego pró assobio,
uma lata cheia de sopa.
domingo, 10 de agosto de 2014
Traficante de sonhos
O Maçariku gostava de máquinas.
Máquinas de luz, de imagem, de som. Câmaras, projectores,
gravadores e até instrumentos musicais que não sabia tocar. Dava
aos amigos, mostrava, usava, trocava nas feiras. A feira da ladra de
Lisboa em primeiro lugar, claro. A feira já não será a mesma sem o
Maçariku, esse passador de coisas e de ideias. E as coisas para ele
não eram só objectos para coleccionar - tinham ideias lá dentro.
Trocar, passar, presentear. Traficante de sonhos e de objectos,
contrabandista de ferramentas de transformação para dar sentido a um mundo onde não
se pode passar sem um bocadinho de tristeza. Mas não é tristeza
para ficar parado. Pode ser uma caixinha de música para ajudar nos
combates.
Uma maneira de estar
O Maçariku ensinou de tudo a toda
gente. Mas ensina-se uma maneira de estar? Uma maneira de estar
intensamente na vida, sem separar acção e pensamento, sem desligar
as técnicas das ideias, sem opor a militância e o sonho, sem
apartar as pessoas e as máquinas, as crianças e os adultos, os vinhos e as letras, sem saber
afastar a cultura da política e amizade da luta. Saber fazer e dar
sentido a esse fazer. Contra o empobrecimento da vida, ele provocava.
Militante, mas antimilitarista (o "Tropa Não!"). Pela
diferença, anti-racista. Contra os chefes, antifascista. Pela igualdade, mas nunca a das paisagens
lisas, porque ele era adversário da "normalidade". Podia
dizer "o que tem de ser tem muita força", mas cinismo não,
cinismo nunca. Rugosas cidades de antagonismo e solidariedade, de
combates e passagens, de barricadas e revoluções, de amigos e de
toda a gente ainda por conhecer, de cafés e ruas, e ruas e ruas e
ruas. Lisboa, como a palma da sua mão.
Com o corpo todo
Rigorosamente desobediente, o Maçariku
falava uma língua só dele, cheia de interjeições, olhares,
esbracejares, esgares, gritos, uivos, sussurros. Ele gritava com o
corpo todo para nos acordar. Mas sussurrava as palavras mais
importantes. Não sabia esconder o seu olhar atento por detrás do
cabelo (que olhos bonitos!), nem a barba escondia o seu sorriso
aberto, desafio constante ao mundo tristonho.
Levanta a pedrinha
Antagonista revolucionário das opções
fechadas, das dominações fora e dentro da cabeça, dos caminhos
fáceis do marketing. Fazemos então muito mais, muito
mais transformador. E convidamos aqueles também, provocamos
aqueloutros também, vamos conhecer gente que faça. Que saiba fazer
porque vive. Que saiba pensar porque faz. "Levanta a pedrinha,
oooooo!..." Porque, para além da amizade, era a transformação
do mundo nas lutas da história o critério da sua indisciplinada
disciplina. Nas lutas grandes e pequenas. E as pequenas
são enormes, decisivas, entusiasmantes e belas.
Maçarico
Um pássaro das regiões costeiras? Um
jovem que ainda não sabe tudo? Uma ferramenta com chama? Sabe-se lá.
A gente só sabe que a sua última máquina parou - o coração. A
vida vai: "Bute, bute!"
Maçariku
Naquela altura eu não sabia bem se se dizia filmagem ou
filmação. Eu votava BCG.
Tinha febre e fizemos o guião de um filme e nunca fizemos o
filme.
Vontade sempre de dar tudo, promessas atrás de promessas,
quem dá também tira.
A idade foi de ouro até chegar à prateleira.
Tira-me esse cabelo da frente dos olhos ternos, vivos,
atira-o para o lado, andar gingão.
As mãos que se davam às conversas, aos cigarros, às máquinas
de filmar, ao prego e aos ombros dos outros. Aos nossos ombros.
Murcham corações. Atordoam-se antenas.
À procura da vibração das cordas da tua voz, da voz, da voz,
da tua voz de encher espaços. À procura, à procura, à procura. E a puta da vida
que não se rebobina.
As feridas demasiado grandes de sangue encarnado vivo, a tua
cor, o vermelho, o oito, a bola preta, as contas redondas, tudo apalavrado.
O homem dos sete instrumentos, o soldadinho, os artesãos e
militantes e clandestinos, velhos, de rugas, dificuldade de andar, com quem
querias aprender tudo, para quem olhavas com os tais ternos olhos. Mas só
querias viver até aos cinquenta, tu, o pescador de mar e de lixo.
E os tantos que ensinavas ficam como, agora? As crianças que
ainda não sabem nada, os adolescentes que precisam de desprezo, os atados que
têm de se desatar para fazer alguma merda interessante deste mundo.
Emprestavas com um v na volta, de vítor. Do viriato que era
chato. Da vida, tão alegre e destemida como outra coisa qualquer. Os beijos no
sítio do costume, as voltas ao bilhar grande, ou então uma curva. A fita do
vhs.
Dá-me medo de escrever, posso perder-te mais assim. Mas se
não escrever?
Os olhos dos mais novos iguais aos dos mais velhos. E os dos
gatos, dos cães, horas a brincar, anedotas, gozos, distribuidor de risos. Era
uma vez um cão que só tinha três patas, ao fazer chichi, caiu.
Fazer quase tudo o que se quer como se quer. Queres apostar?
Pôr tudo a andar, construir coisas. Ser bastidores,
estrutura, a força, a base, o motor. Pedir e forjar amor. Discutir e não ceder.
Teimar com e sem razão, teimar sempre. Com quem se ama, sempre.
Acumular pó, máquinas, quadros e bocados de pedra ou de
metal que ninguém sabe o que são. Espreitar de curiosidade, chamar um cúmplice,
mais vivos os olhos, mãos a falar. Coleccionar de tudo. Dar e tirar, trocar.
Fiar. Focar.
Dobrar combates com um isqueiro ou uma garrafa de cerveja.
Despachar as coisas, meter as mãos, resolver. Sozinho e com outros. Não
embirrar à partida, só embirrar depois e se. E se depois e se, embirrar tudo.
Fugirmos na lata do bora-bora, janela aberta, muito ventil,
um jornal por dia, chupar gasolina para cozinhar o bacalhau. Estado espanhol, viagens,
férias, praias, tendas, casas com vacas e moscas, canas de pesca, xadrez, rios
e cidra e sacos-cama. Ou então vamos só aos caracóis.
Lisboa sem ti, a palma da tua mão, as pedras da calçada, os
prédios, as pessoas a virar esquinas, faz isto sentido? Por onde respira?
E esta casa, e esta companheira de vida, e esta filha, e
estes filhos todos, e estes manos todos e estes todos todos?
Apetece-nos murros contra muros até ver estrelas de cinco pontas.
Apetece-nos murros contra muros até ver estrelas de cinco pontas.
Mas a gente vai continuar. É só ter a tua voz aqui na cabeça. E
o que tem de ser tem muita força.
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