quarta-feira, 29 de dezembro de 2010

Ninguém mas muita gente

Vais aqui e acolá
Para trás e para a frente
Pôr o arroz a cozinhar

Tiras pratos e panelas
Agarras a cafeteira com uma mão
Corres a todas as janelas
E segues para outra divisão

Lavas a loiça
Varres em todos os sítios o chão
Pões na máquina os cortinados
Que já muito sujos estão

Escreves uma carta
Colas no envelope o selo
A tua imensa electricidade
Chega até ao cabelo

Não sei de quem estou a falar
Mas deve haver tanta gente assim!
... com esta electricidade
Lavar chão, cozinhar, enfim

Não conheço ninguém assim
Mas muita gente há-de haver
Só vão para o seu jardim
Quando em casa nada houver para fazer


[Este texto foi feito dia 22 de Abril de 1993, quando andava na Escola Marquesa de Alorna, no 5º ano. Sempre que leio este texto apetece-me acrescentar:

Já agora
Que estou a comer pão de ló
Confesso que a pessoa em que estava a pensar
Era sem mais nem menos... a minha avó.]

terça-feira, 28 de dezembro de 2010

matar uma freira com um soco

-
Walking Around

Acontece que me canso de meus pés e de minhas unhas,
do meu cabelo e até da minha sombra.
Acontece que me canso de ser homem.

Todavia, seria delicioso
assustar um notário com um lírio cortado
ou matar uma freira com um soco na orelha.
Seria belo
ir pelas ruas com uma faca verde
e aos gritos até morrer de frio.

Passeio calmamente, com olhos, com sapatos,
com fúria e esquecimento,
passo, atravesso escritórios e lojas ortopédicas,
e pátios onde há roupa pendurada num arame:
cuecas, toalhas e camisas que choram
lentas lágrimas sórdidas.


PABLO NERUDA

25

à Maria Letícia

chapelinho de quadrados
de vagar pela rua frenética
com uma fímbria de sol no laço
e uma saudade solta

desce um ar de natal sobre os passeios
sobre as pessoas sobre os carros
e um olhar sem palavras que flutua
põe-se a dizer de manso
antigamente

sinto surpreso que há momentos
em que as próprias rugas sabem bem
a ao nosso lado
numa alegria de cabelos soltos
o passado e o futuro correm de mãos dadas

MÁRIO DIONÍSIO, in O riso dissonante

terça-feira, 21 de dezembro de 2010

poema para o desenho doze de vinte e três desenhos e um fragmento de MD

o rapaz tem risca ao lado conforme o cabelo lhe nasce
e tem barriga de fome conforme a condição dos pais
e vive com tanta avidez e gana e vontade insaciável
que abre a boca de repente e abocanha o mundo todo
- que grande barriga, hein?
a barriga redonda perfeita redonda que faz o rapaz rebolar
as guerras aqui e ali que fazem as dores
no estômago, no peito, no corpo todo que é agora uma bola
e as fábricas e as empresas que exploram o petróleo e os homens
dão vontade de vomitar
aperta o rapaz o mundo dentro de si à sua volta
abraça o rapaz o mundo sem saber se o quer dentro de si
quer dar passos em frente e tomba e rebola
e assim já não pode nunca mais ir à escola