terça-feira, 29 de outubro de 2019

Caderno do caderno

Abro-te sempre ao contrário
do fim pró princípio.
Oh, caderno cronológico
do mundo ao contrário...
O que interessa
a linha do tempo?
Quando já todos aprendemos
que nada é linear
que nada é óbvio e consequente.
Abro-te caderno ao contrário.
Desafias-me.

*

Tanto que escrevo
à noite
quando a vida acontece
só cá dentro
da minha cabeça.
E quadros e cadernos
e poemas e canções
discursos inteiros em reuniões
e nada
no dia seguinte.
No intervalo,
sonhos.

*

Como querem que escreva
num bar onde não se fuma?

*

Faltam aqui dentes
tão importantes
um que bebia CRF
por exemplo
e que já não tinha dentes.

Faltam aqui dentes
para mastigar o mundo
insuportável
barulhento
agoniante.

Faltam aqui dentes
como pedras do asfalto.

*

Agora fazia assim.
Agora publicava tudo.
Porque o vómito precisava.

Agora já não havia bom e mau
mas só avalanche
verborreia
enxurrada.

Agora era mandar tudo
contra a parede
contra todos
até que todos
fugissem de mim.

*

Vou ter um cão
mas não vai ser meu súbdito.
Oh, que incongruência!
Então, pronto,
não vou ter um cão.
Vou ter um gato
autónomo
e independente
a comer da minha gamela...

*

Ao lado
nas escadas
tão típicas
de Lisboa antiga
cantam-se músicas
tão conservadoras e
agoniantes
que tenho de deixar
de estar aqui sentada
não suporto mais
o destino a lágrima
a felicidade plástica
dum povo cego
e o seu amor
pela cultura de massas.

*

Berrei e travei ao mesmo tempo
O passeio tem um tempo mais lento
Às ruas teimamos chamar estradas
Trememos de calçado nas calçadas

Os pés cortados
por esporas e pedais
As mãos torcidas
por tocar botões demais
Decapitados
por drones virtuais

Acidente de bicicleta
Fui chocar com a trotineta
O metro ainda tá caro
Por aí...
ainda há muito carro

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