quarta-feira, 30 de julho de 2014

a dor alheia à menina

menina,
a sua silhueta disse-me
da maneira mais bonita
que já não acorda com os meus olhos

e contudo eu vi na sombra
verdes e castanhos, quase amarelados à volta
esses seus que sem luz vêem o cá dentro

vi-os com menina
vi-os com será
vi-os carregados
com a dor alheia
e um robalo

Depois disto, a menina cantou:

vai amar
pescador
pesca pesca
pesca peixe pesca

senta-te à mesa
e bebe
pescador
bebe vinho bebe

deita-te na cama
e dorme
pescador
dorme tudo dorme


entretanto

A morte só antes e depois: tudo é vida entretanto no humano.

de meu bem desenganado

Engano?
Não! Porquê engano?

Sim, é tudo biologia.
É tudo cultura e biologia.
É tudo comida, cultura e biologia.
É tudo bebida, comida, cultura e biologia.
É tudo electricidade, bebida, comida, cultura e biologia.
É tudo música, electricidade, bebida, comida e biologia.
É tudo história, música, electricidade, bebida, comida, cultura e biologia.
É tudo química, história, música, electricidade, bebida, comida, cultura e biologia.
É tudo física, química, história, música, electricidade, bebida, comida, cultura e biologia.
É tudo mar, física, química, história, música, electricidade, bebida, comida, cultura e biologia.
É tudo linguagem, mar, física, química, história, música, electricidade, bebida, comida, cultura e biologia.
É tudo jogo, linguagem, mar, física, química, história, música, electricidade, bebida, comida, cultura e biologia.
É tudo poesia, jogo, linguagem, mar, física, química, história, música, electricidade, bebida, comida, cultura e biologia.

(Engano não, engano não, engano não, engano não.)


com algumas raízes

#

inimigos os cemitérios que fecham às seis de todos aqueles que receiam não ser anónimos nestas ruas mas que desejam tanto como os outros sentir na pele e nas sinapses este calor seco de derreter dedos nos dedos com esta luz acásica mágica

            para poder a escrita estar aqui
                 é preciso ser-se anónimo
                 é preciso ser-se adolescente
                 para ser-se anónimo

- O teu tempo já passou
- O teu sorriso passou agora

            ser-se louco ser-se louco
            ser-se louco é outra hipótese


##

de repente a rua era minha como
dantes
mas eu estava excitada demais com
essa surpresa
            não conseguia estar toda cá

percebi o lado autodestrutivo
de agora e de antes dedos nos dedos com
o mais intenso prazer

            talvez ganhe forças para ir comer
            quando o sol se puser
            no horizonte que não vejo
            (só clarões atrás de prédios)

mas onde?
o quê?


###

não saber parar
não saber não re-levantar
ter medo dos outros
raiva dos sons
falta de equilíbrio
sufocar
imobilizar
por dentro explodir
- e não sou a única

que mundo estúpido
como está.

quarta-feira, 16 de julho de 2014

   nojo

terça-feira, 15 de julho de 2014

metro do fim do dia

quero saber da temperatura da água
deixar de fumar por hoje
mas não vou dispensar aquele

quantas vezes flashes
dos quinze anos da caneta mágica
da calma, de árvores, de cadernos

vou esquecer-me da saída assim
sair nos moinhos altos
esfarinhada em pão

que mundo a correr
que saudades do estoril 1947
que medo dessa data nessa praia

terça-feira, 8 de julho de 2014

constelações às turras

Dor do estar
na água que se ensalobra
no podium a fazer de taça
com a dura carcaça
furada pelas balas
sem as tuas
lucidez e mãos quentes
de peito dormente
de groselha regada
posta no meio da estrada
gritando pus
devagarinho derretendo
moendo os ossos

descansa-me as palpitações
falar

segunda-feira, 7 de julho de 2014

o caderno


Perdi o caderno castanho da marca vermelha. Tinha lá escritas as notas do secretário, agora irrecuperáveis. Esforço-me por reconstituí-las de memória. Mas antes deixem-me contar-vos como perdi o caderno castanho da marca vermelha.

Num escuro fim de tarde de Fevereiro em Lisboa cruzei-me com um homem (tinha a aparência de o ser, pelo menos) ali ao jardim da Gulbenkian, numa rua lateral, a Marquês Sá da Bandeira, se não estou em erro no nome. Passei por uma pequena porta verde de uma antiga tabacaria abandonada. Levantei a cabeça, vi-o no reflexo do vidro passar por mim. Passei por ele, olhei-o ainda um instante. O estranho homem, cicatriz na testa, mais alto que eu talvez poucos centímetros, magro e seco, fugiu rápido com o olhos vermelhos, fechando o sobretudo preto e puxando a gola numa simulação de frio. Naquele segundo percebi que me tinha desaparecido o caderno castanho da marca vermelha. Ao lembrar-me do seu casaco tremi de pavor, como Edgar Allan Poe me tinha ensinado no livro. Subitamente entendi - aquele homem era eu mesmo. Mas o caderno já não estava no meu bolso.

mamute mutante

vais ser o que és
mutante incongelável
apesar do frio
vais ser o que és:
outro