O
João Baía, com quem me cruzo nesta e naquela luta, e por consequência neste e
naquele convívio – ou vice-versa – e de que me aproximei muito graças ao Coro
da Achada, onde cantamos os dois, desafiou-me para participar numa conferência
com o título «“Grândola Vila Morena,
Terra da Fraternidade” - Canções de protesto, ontem e hoje». Medo. Ainda
lhe tentei dizer que não. Porque não sou musicóloga nem socióloga nem
historiadora, nem grande pensadora, e para além disso tenho horror a falar em
público. Mas, se é verdade que passo a vida a refilar por muitos debates terem
nas mesas apenas especialistas, ou pessoas muito conceituadas e reconhecidas, e
se é verdade que o tema não me era assim tão estranho, lá resolvi dizer que
sim.
E
pus-me a pensar nisto das canções de protesto ontem e hoje. E no que raio tenho
eu que ver com isso. Quer queira quer não, e mesmo que nós não lhes ponhamos
nenhum rótulo, as canções que faço desde há mais de dez anos com o Pedro são
inúmeras vezes apelidadas de «música de intervenção». Da mesma forma, o coro
que iniciámos há uns quatro anos na Casa da Achada, também leva bastas vezes
essa etiqueta de «música de intervenção». O que raio será música de
intervenção? Mas a música não intervém sempre? Intervém sempre, acho eu, seja
para questionar o mundo que temos, seja para ajudá-lo a continuar como está.
Bom, talvez «canções de protesto», como aparece no cartaz desta conversa, seja
um pouco mais claro. Mesmo assim é preciso sempre interpretações,
subjectividades e contextos… Se olharmos de relance para a letra da Grândola –
Grândola vila morena, terra da fraternidade, o povo é quem mais ordena dentro
de ti ó cidade – podemos não ver lá nenhum protesto, só constatações. Em vez de
«o povo é quem mais ordena», teremos de ler «o povo é quem mais devia ordenar»
para que ela seja uma canção de protesto.
Afinal,
o que será isso? Uma canção de protesto? Vem-me à ideia um lamento - mas que se
alia a uma ideia e a uma vontade de acção e transformação. Será uma canção que
reclama com a situação, mas que também reivindica ou promete coisas, que pode
imaginar futuros, criar utopias, terras da fraternidade, urgas, yukalis. Será
uma canção que fala da nossa própria condição (como um tipo que vi no outro dia
em Alfama, a tocar uma canção sobre tocar na rua e não ter licença) ou então
ser uma canção que é testemunho de uma situação, de uma condição ou de uma luta
de outros – e que lhes pode ser oferecida e dar-lhes força, e que pode ser
depois adoptada por eles e ser cantada durante as suas lutas, e que pode servir
para dar a conhecer um acontecimento de resistência a outros que vivem noutros
sítios e noutros tempos, e tornar-se um documento informativo e histórico.
Se
as canções que faço hoje têm cheirinhos de canções de ontem? Têm. Porquê?
Porque
as lutas, se pensarmos bem, trazem muitas vezes canções com elas. E se nascemos
e crescemos no meio de pessoas lutadoras, ou em momentos de luta, ouvimos essas
músicas quase desde sempre, e re-ouvimo-las, e já estamos habituados a
lembrá-las, a cantá-las e a reutilizá-las. As canções que faço hoje trazem
consigo, das mais variadas formas, as canções que ouvi desde que nasci – sejam
elas canções de protesto ou não. Mas se ouvi muitas canções de protesto, se
nasci com a voz e a guitarra do Zeca Afonso, do Zé Mário Branco, do Sérgio
Godinho e do Fausto, e se gosto bastante delas, é normal que influenciem
canções de hoje que também se querem de protesto.
Se
as canções de protesto que faço hoje têm cheirinhos de canções de ontem? Têm.
Porquê?
Porque
as lutas e as canções não nasceram hoje, porque vêm de trás, e a memória das
lutas de ontem é tão importante como as lutas de hoje. Porque a história não é
linear, e lutar contra o capitalismo e contra os poderes opressores nunca será
uma guerra ganha. Porque para compreendermos o presente temos de conhecer o
passado. Porque, para termos força para lutar aqui e agora, o que há de melhor
senão saber que há e houve outros como nós a lutar noutros sítios e noutros
tempos? E, para sentir essa solidariedade de outros com as nossas lutas e a
nossa solidariedade com as lutas dos outros, de muito servem as canções que
cantamos ou que ouvimos cantadas por outros.
E,
no meio disto, há também que entender que as canções que caminham connosco se
escolhem. Nunca são «todas as canções que já houve». São as que conhecemos e as
que nos dizem mais, as que procurámos e encontrámos (e sempre procuraremos e
encontraremos novas, mesmo que antigas). São aquelas que escolhemos.
Falei
em «cheirinhos» de canções antigas nas canções de hoje. Que é quando se
reconhece um conjunto de notas, ou uma forma de tocar guitarra, ou um certo
crescendo até ao refrão, ou o uso de certas palavras. Mas e quanto a pegar em
canções antigas e refazê-las? Mudar-lhes a letra, por exemplo? Tantas vezes…
Porquê? As razões podem ir do eco que as canções podem ter entre si até razões
muito práticas, que se prendem com as relações das pessoas com a música. Dou um
exemplo.
No
verão de 2011 fui à es.col.a da Fontinha, no Porto, uma escola que foi ocupada,
como devem saber, e que a essa data ainda não tinha sido desocupada. Os
companheiros de lá, quando souberam que eu ia, pediram-me para cantar lá
qualquer coisa. Ora eu, apesar de cantar, não sei inventar músicas nem sei
tocar nenhum instrumento, e o Pedro, o homem dos sete instrumentos, não ia
comigo. A solução que arranjei foi a que tantas e tantas pessoas arranjam para
poderem cantar sem saberem fazer música: fazer uma letra nova para uma música
que já existia e que eu já sabia cantar. Sobre Os índios da meia praia, do Zeca, inventei uma nova letra, sobre a
escola da Fontinha. Depois disseram-me que a canção antiga ecoava na nova.
Claro. Não foi por acaso que escolhi Os
índios da meia praia para fazer uma canção sobre uma escola ocupada, por
pessoas que queriam tomar as coisas nas suas mãos.
E
nas manifes e em acções, e tantas vezes, é muitas vezes isso que acontece.
Pegar em canções que já existem, e meter-lhes uma nova letra. É uma forma
simples de quem não sabe fazer músicas poder fazer novas canções. E é também
uma forma de muitas pessoas poderem cantar em conjunto. Porque a melodia já é
conhecida por todos, e a letra pode escrever-se num papel, ou aprender-se
rapidamente. Também no coro da Achada há músicas assim, feitas por cima de
outras - muitas vezes por cima de canções noutras línguas, de companheiros que
andam em lutas noutros lugares do mundo, muitas vezes contando uma história de
hoje por cima de uma canção que tinha uma história de ontem -, e nos convívios improvisados
à goela e à guitarra no quintal da Casa da Achada muitas vezes isso acontece. E
em muitos destes casos, sobretudo em manifestações até, nem sempre as canções
antigas de onde partem as novas são canções de protesto. Podem usar-se
cançonetas banais, muitas vezes muito conhecidas e comerciais, para lhes dar
uma letra que já vai torná-las uma canção de protesto. Pode-se pegar nos ABBA e
cantar contra o capitalismo. Bom, mas também podemos pensar que não queremos
usar uma canção do Quim Barreiros para cantar uma letra feminista… Há sempre
escolhas a fazer.
E,
claro, há canções que se cantam sem mudarmos uma linha da letra. Porque
continua actual. Ou porque é poética ou geral e dá para todos os tempos, ou
porque apesar de falar de coisas muito concretas sentimos logo que estamos a
falar à mesma do que se passa hoje, mesmo que mudem os nomes dos bois.
O
que é facto é que as canções só vivem quando são cantadas e ouvidas, o que também quer dizer,
naturalmente - ou não fosse o homem homem -, refeitas, repegadas,
transformadas. Caso contrário, estão em coma, guardadas num arquivo morto, e
apenas consumidas individual e nostalgicamente. E aqui entram os meus problemas
com os direitos de autor e com as proibições da partilha e do uso das canções.
Sempre se cantaram canções e elas sempre foram ouvidas e cantaroladas em
seguida por quem as ouviu. Da forma que quiserem… que aliás quem conta um conto
acrescenta sempre um ponto. Mas ó meu caro, vamos lá pôr os pontos nos is, pode
uma música que quer questionar o capitalismo ser propriedade? Faz sentido
contestar um regime e alimentá-lo jogando de acordo com as suas regras? Faz
sentido proibir ou limitar o uso e o abuso das canções heróicas do Lopes-Graça,
que sonhava ouvi-las assobiadas na rua por alguém que fosse a passar, ou as
canções do Zeca, ou as do Beethoven, ou as minhas? «Minhas»?
E
como, por sugestão do título desta conversa - «canções de protesto ontem e
hoje» -, me pus a discorrer sobre as reutilizações, hoje, das músicas de ontem,
falta ainda dizer que a criação original, a criação de novas canções que não partam
directamente de outras, é preciosa. E não tem sido menos feita. A criação
original está cheia dos cheirinhos da travessia que nos trouxe aqui - isso já
sabemos. Isso agrada-nos e nem poderia ser de outra forma. Mas não chega
reutilizar. É preciso também sons e palavras novas, para situações novas e
sentidos novos, para cérebros e sociedades diferentes.
Volta
e meia no Facebook, onde me cruzo com os pensamentos de pessoas mais velhas que
antes lutaram e que agora andam bastante caseiras, e também de pessoas novas
mas que falam do mundo sobranceiras e com tom de lamúria, como se já tivesse
passado o seu tempo, deparo-me com frases como «Já não há canções de protesto
como antigamente». Às vezes se calhar achamos que já não há canções de protesto
porque andamos à procura do som das guitarras gravadas nos estúdios dos anos
70, ou da maneira de cantar do Pete Seeger ou do Georges Brassens ou do Adriano
Correia de Oliveira ou do Sérgio Godinho. E passam-nos ao lado «O paraíso
fiscal» dos Diabo a Sete ou o «Estado Febril» dos Caruma. E passa-nos ao lado
todo o hip-hop, que nos últimos tempos tenho achado que é dos géneros musicais
que mais diz coisas concretas sobre a situação – e, para além disso, sobre
situações por muitos desconhecidas como é a situação nos bairros - e que mais
protesta. E por horror a tecnologias e a sonoridades electrónicas – de que
confesso não ser a maior apreciadora, também – pode acontecer-nos
esquecermo-nos de que os Bandex pegam nos acontecimentos políticos do dia
anterior para fazer canções quase instantâneas que circulam rápida e largamente
pela internet. Haverá música mais em cima do acontecimento que esta? E por
horror automático aos cantores pimba, podemos nunca chegar a ouvir a canção de
Nel Monteiro «Puta vida merda cagalhões», que falava de pobres e ricos e
criticava a Expo 98 quando ela era por todos bajulada.
E
se nos consignarmos apenas à nossa condição de consumidores, como quer a nossa
sociedade, e apenas procurarmos música nas prateleiras da FNAC (que também terá
a secção «música de intervenção», ou não tentassem eles integrar tudo… e pode a
cantiga ser uma arma nos escaparates da FNAC?), como encontrar, dizia eu, nessa
prateleiras, as canções de protesto do Mário Trovador, dos Trashbaile, dos
Focolitus, do Coro da Achada, de Pedro e Diana? Que cantam na rua e às vezes
não gravam, e que quando gravam fazem discos caseiros, copiados no computador,
com livrinhos em fotocópia, e os vendem de mão em mão, sem factura? Como
esperar encontrar nas catedrais de consumo a cassete «Educa-te cão!», que um
conjunto de estudantes fez nos anos 90, com canções em torno da luta contra as
propinas, ou o disco que fez o Movimento Anti-Tradição Académica em 2006, com
criações originais de várias bandas contra as praxes? E se não descermos à acampada
do Rossio ou não descermos às minas com os mineiros, saberemos das músicas que
lá nasceram e que lá se cantaram? Isto para dizer que também é preciso
contrariar os nossos preconceitos musicais, e que também é preciso andar nas
lutas e na rua, e fora da sociedade de consumo, para conhecer e cantar canções
de protesto.
Diana Dionísio
Intervenção, em 30 de Abril de 2013, em «As portas que Abril abriu - Abordagens dos processos de transformação no período pós 25 de Abril». 1ª conferência/conversa na Biblioteca Museu República e Resistência - Espaço Grandela na Estrada de Benfica, que contou com a presença de Viriato Teles, Francisco Fanhais e Diana Dionísio. Falou-se de músicas do presente com cheirinhos de outros tempos, da última revolução feita pela rádio, do Zeca Afonso como cimento/referência entre as várias gerações que participaram nos últimos protestos. Da expressão "Zeca Afonso português", quando nos referimos ao Victor Jara, Pete Seeger, ou Fabrizio di Andre. Ouviu-se o Bairro Negro e o Traz outro amigo também pela voz de Francisco Fanhais e a melodia dos Índios da Meia com letra dedicada à Es.Col.A da Fontinha pela voz de Diana Dionísio.
Este pequeno filme mostra alguns momentos desta 1ª conferência/conversa:
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