E por falar em sementes…
A GRÉVE DOS GRÃOS DE TRIGO
Quasi
uma ninharia, semente ligeira, pequenino fruto, talo de erva num sulco, grão
rubro numa espiga, pó branco no moinho, festim de inséto, na minha pequenez possuo
a humilde inocencia campezina, ocupo um logar impercétivel na natureza, razo
com a terra, ignorado dos grandes vegetaes prodigos de sombra e que enormes e
musicaes se erguem até ás nuvens como nas igrejas.
Tão
debil e modesto, nada valho por mim mesmo; é necessario que sejamos muitos.
Começam a olhar-nos com consideração quando nos juntamos um centenar para
formar uma espiga; uma palhinha nos ergue então um pouco acima do sólo e em
volta de nós avistamos o mundo; a brisa que passa faz-nos enclinar em
reverencias humildes, pois que ainda nos ergamos continuamos sendo modestos,
sempre coisa minima; o primeiro que passa pisa-nos sem querer e morremos. A
nosso lado as papoulas levantam as suas pequenas cabeças roxas e as margaridas
as suas estrêlas brancas. Entre os seus requebros permanecemos simples, rubros,
timidos, um pouco candidos, e os pequenos escaravelhos roxos encarrapitam-se
nas hastes que os sosteem como o poderiam fazer num mastro de cocanha. Nem
sequer possuimos a barba dos barbudos centeios que vivem perto de nós.
*
Porém,
se a nossa importancia aumenta um pouco com a espiga, torna-se consideravel
pela associação das espigas, e então respeitam-nos quando formamos um campo, e
até o governo delega um guarda campestre para velar por nós como se fossemos
altos personagens. A nossa humilde personalidade desapareceu. Convertemo-nos em
multidão e a nossa idilica massa cobre a terra. Todos procuram fazer-nos cêrco;
os grandes e orgulhosos vegetaes retrocedem e por mais insignificantes que por
nós mesmos sejamos, o numero converte-nos num elemento poderoso. As nossas
espigas ondulam como o mar agitado; combatem-nos como se fossemos um ezercito,
com as fouces, e como a mão do homem, só, não basta,é precisa a maquina que nos
ceifa. A agua, o vento, o vapor, pó. E este mesmo pó é preciosissimo. Somos o
pão que nutre os homens.
*
Então a nossa
importancia cresce até chegar á hiperbole. De humildes e rusticos grãos de
trigo convertemo-nos em politicos. Para os graves economistas somos os cereais. Na bolsa cotisam-nos como se
fossemos ouro; pezamos nos destinos dos imperios, fazemos as revoluções. Por
nós se matam os homens. Por nós o sangue corre.
Na
nossa humildade campesina, na nossa benignidade e inocencia de grãos de trigo,
em vez de nos orgulharmos, esta luta dos homens entristece-nos.
O
valor que os homens nos impõem, não o queremos, pois é feito da necessidade dos
homens e do sofrimento dos pobres. A nossa força bemfeitora e doce despresa-o.
Nós queriamos multiplicar-nos; a nossa fecundidade inesgotavel está á
disposição dos homens; oferecemos a nossa abundancia e a nossa prodigalidade
naturaes; um punhado de nós constitue um tesouro na terra; oferecemos os nossos
tesouros inesgotaveis que podem aplacar os mais famintos e saciar todo o mundo.
Só pedimos que nos semeiem.
E
os homens negam-se a isso. O cego interesse duns quantos o impede. Roubam-nos a
terra, desterram-nos. Os semeadores desfalecem ante este interesse particular e
as leis interveem para nos encarecer. Formam-se ligas para restringir a nossa
fecundidade. Fazem-nos abortar. E o que mais choca é que os homens se batem por
nós, encerram-se entre fronteiras, odeiam-se, levantando ezercitos e
alfandegas.
*
Por
fim, este espectaculo, irrita-nos, e ante a maldade dos homens que nos obriga,
apesar do nosso caráter modesto e bom, a converter-nos em objéto de lucro têma
de assassinato, nós cujo sonho pacifico é dispensar a todos gratuitamente a
vida, como o ceu dá o ar e o sol a sua luz, nós rebelamo-nos. A nossa natureza
amigavel não quer, não pode suportar este papel de discordia. Vamos
declarar-nos em greve sobre toda a superficie da terra. Permaneceremos
enterrados nos sulcos, pediremos á tempestade que nos incendeie com os seus
raios, que destrua com o seu graniso e ao sol que nos queime.
Converter-nos-hemos em palha inutil e esteril. E então os homens famintos
compreenderão.
Compreenderão
a inutilidade das suas guerras, a mentira dos seus interesses, a puerilidade do
seu orgulho. Terão que considerar que, como nós, são pouca coisa; como nós,
compreenderão que nada valem senão em comum, pela associação fraternal de
todos, e então a humanidade não formará mais que um só homem, como uma espiga.
E não terão medo de semear a terra. Unir-se-hão para semear em logar de se separarem para combater.
Os
nossos grãos, arremessados profusamente, voarão para os sulcos; cresceremos
robustos, macissos; cobriremos a terra com o ouro bemdito e rubro das colheitas
que fazem o pão do homem. E todo o mundo poderá viver, porque, então, já nada
valeremos. E na nossa modestia ficaremos contentes.
Mas
atualmente o nosso valor espanta-nos, a nossa carestia envergonha-nos…
Na
procima primavera vamo-nos declarar em greve.
Henrique Févre
Cultivar sem restituir é cultura
de rapina.
Liebing
in A Sementeira – Publicação mensal ilustrada – Crítica e Sociologia,
nº 1, Lisboa, Setembro de 1908, pp. 7 e 8
(este texto foi publicado em francês, «La grève des grains de blé», no suplemento literário de domingo do jornal Le Figaro, em 3 de Março de 1894)
(este texto foi publicado em francês, «La grève des grains de blé», no suplemento literário de domingo do jornal Le Figaro, em 3 de Março de 1894)
1 comentário:
bem dito, Diana!
quando alguém me diz que já não existe música de protesto / intervenção (como antigamente), costumo responder com esta:
http://www.youtube.com/watch?v=P52wgFw6YQA
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