sábado, 2 de junho de 2012

a ferida

eu sou uma ferida
eu sou talvez ou por exemplo a ferida do nariz da minha avó
em vermelho vivo e em vermelho crosta
a escorrer e seca
a arder e a dor muscular
olha-me e pareço bonita
e olha-me mais e sem cegueira não vês as quebras no tecido macerado
as manchas gretadas
não, pode ser que não vejas
a máscara da ferida fica bela e parada em luz de inverno muito nítida
olha-me e pareço parada
e não vês as plaquetas a trabalhar a sair a entrar a coagular-me as arestas
e a dor muscular
não vês por dentro as nódoas negras a pedir punhos cerrados para não sentir a ressaca
a pedir unhas que façam sangue sangue que corra
para parecer viva
a ferida viva
os ossos pedem para ser vistos
o resto da pele a ser branca mais branca pálida
a ferida viva que já não grita
que grita calada
que grita o toque o raspão o rasgão a sina das unhas dos cortes de
x-acto
a ferida que se constrói
que mói que agarra o tempo e o ciclo de sarar
mais e mais massacrada e só calma e calada
entupida sem sons
a entregar-se a ser assim
beija-me que saibo a ferro e ferro dá-te força
tira a força que eu sou só ferida
lambe-me que saibo a ferro e ferro faz armas
tira a espada para ficar só
a ferida
não vês agora que horrorizo que sou carne que sou pêlos
fundo de esgoto centenas de larvas
não vês como sou feia e sem coragem
só feia exposta visão de horror
vês agora que os teus olhos se arregalaram de medo
que os teus pés dão passos atrás imóveis
que as tuas mãos se abriram voltadas para o chão
e é esse o momento em que a ferida começa a cantar com a voz que pediu emprestada à bela sereia
Entre a Flor e a Enxada by Shila on Grooveshark

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