sexta-feira, 2 de julho de 2010

então e não cantam?

No início eram duas pessoas. Não. No início era o nada. Não. Há qualquer sólido lá no meio. Do outro lado das cabeças.
Mas as cabeças não existem.
E são comportadas. Bem vestidas. Querem ser peixes dentro de água.
Onde estou?
(Repousar a cabeça antes de o espectáculo começar. Tirar. - pensamento de pai. Tido agora a posteriori.)
No início eram duas pessoas. Depois uma tornou-se artista e a outra obra de arte em potência. Actuante e objecto. Modelo. Modelo de aulas de desenho.
Eu passei 360 horas a ser olhada pelo artista, fiz estas posições todas.
Eu sou muito flexível.
O meu movimento desenha.
Depois o modelo vai olhar para a "sua" obra de arte concluída. Não sabe relacionar-se com ela. Não sabe como há-de. Rejeitá-la ou amá-la? Dar-lhe um pontapé?
Ao fim encaixa.
Mas encaixa tanto tempo que ficamos com falta de ar. Gira-se a cabeça em silêncio, troca-se de pé, sabe-se que se respira. O ar aquece, as cabeças tentam provar que da água ninguém as tira.
Só muito depois vêm: as caras das cabeças, os sons que nascem do silêncio incómodo, forçado e opressor, a luz e a sombra, o sólido que talvez seja uma obra de arte e, finalmente, o auto-riso que nos esclarece: estão a gozar connosco.
A modelo que encaixou tem um sorriso trocista. Sim, quanto tempo aguentam no meio do nada?
Espera. Ela tem uma perna amputada e sorri ao chegar ao pé de um pé-prótese que vai poder usar. É um riso de felicidade de prótese.
Não tenho ar.
A pessoa que já não é pessoa mas artista vai passados 10 anos buscar a sua obra de arte, à qual o modelo tinha ficado colado, e passa-lhe o pano do pó. Só no modelo.
O modelo pode continuar a servir. Como modelo ou como pessoa. A obra de arte não vai servir para mais nada. Vai ficar eternamente no mesmo lugar, na mesma posição, com a mesma luz, de pedra branca.
As cabeças então podem olhá-la de passagem e saber que a pedra branca é eterna.
Não tropecemos em escadotes laranja e fardos de palha no meio do escuro.
Lá fora há pessoas. Falam de mel e anel, ritual e revir. Dança, mármore, entrada. Mas eu só vi à saída.

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