quando a cidade se começou a vender, deixei de usar qualquer
café na minha rua porque o café não era para mim, porque o café custava um
balúrdio e as mesas não eram feitas para ficar a ler o jornal
quando a cidade se começou a vender, as ruas já não tinham
um desenho para eu chegar onde queria facilmente, as ruas passaram a dar saída
só para museus, monumentos e lojas de galos de barcelos
quando a cidade se vendeu, já nem os anúncios eram para mim,
porque a cidade não se vendeu para mim, porque eu não a podia comprar
quando a cidade se vendeu, os bilhetes de autocarro e de
metro e de eléctrico e a gasolina, o gasóleo e os parquímetros passaram a custar
um preço que se ria a bandeiras despregadas dos trocos que eu levo no bolso
quando a cidade se vendeu, os jardins deixaram de ter
árvores e arbustos e lagos e bichos e passaram a ter o chão liso, duro e branco,
e brancos eram os bancos, e continuavam a chamar àquilo jardim, porque jardim é
uma palavra bonita
quando a cidade se vendeu, os parques infantis e as lojas e as
garagens e os ginásios e os correios estavam forrados em todas as arestas de
protecções contra os assaltos
quando a cidade se vendeu, as pessoas que lá viviam
começaram a deixar o centro por ordem das classes sociais a que pertenciam
quando a cidade se vendeu, passou a ser um parque de
diversões para turistas, e quem ainda lá morava escondia-se em casa porque as
ruas e os cafés não eram feitos para si, e era uma chatice para os senhores importantes
e os arquitectos urbanísticos quando as bichas da loja do cidadão saíam pela
porta e davam a volta às esquinas
já não sei se a cidade se vendeu ontem ou se foi hoje, ou se
é amanhã
Sem comentários:
Enviar um comentário