Notas por desenvolver sobre a peça “Repartição”
Repartição é um texto de Miguel Castro Caldas e uma encenação de Bruno Bravo com os Primeiros Sintomas. Foi apresentada neste início de Março de 2008 na Culturgest
1 - fim da repartição
- fim do “estado social” - o que é isso? Estado - aparelho de repressão de uma classe, etc/ Social - diz-se do Estado que garante algumas regalias, defende “bens comuns”, permite acesso a serviços públicos considerados (socialmemente) como essenciais;
- fim da repartição da riqueza (tributar/descontar para quê se estão a atacar aquilo para que descontamos, os serviços públicos e, enfim, a paz, o pão, habitação, saúde, educação -, para quê se estão a destruir algumas conquistas das lutas?); e os ricos, a burguesia, descontam o quê do que exploram e do que ganham “por fora” (das suas finanças)?
2- uma contradição
- esta peça (contradição?) faz-se na Culturgest - CGD, uma verdadeira repartição de finanças; produção de arte, sensibilidades, cultura ligadas a um banco, símbolo da cultura da acumulação (o contrário da “repartição”);
3 - boas perguntas
- pôr em causa (colectivamente) a “ne-ces-si-da-de” (os sapatos, as peúgas). Necessidade de distribuição - o que e como se distribui; de consumo - do que e como se consome; de produção - do que e como se produz. A questão da necessidade é central;
- a ana é uma mulher (vende o corpo - a força de trabalho; prostituição como paradigma do trabalho) - a condição das mulheres ultrapassa a questão do trabalho;
- as vozes (o coro) já são (início de) resposta - é uma partição (partitura, partition), e obriga a uma produção colectiva de um modo a que o teatro (e a música!) dominante habitualmente foge;
4 - o comunismo acamado
- um velho doente (a montanha, a religião, o peso da história, a resistência à morte mas incapacidade de se mover - ausência de movimento; o espectro do comunismo paira sobre a ana)
- um velho doente perante a ana (as palavras finais “sou eu meu senhor, a ana” e, no texto, o “estar descalça”, não ter portanto os tais sapatos mas - talvez - poder caminhar)
5- a emoção vs a distância
precisamos (na arte) da emoção para pensar e da distância para sentir
Escólio A
A peça é antagonista - também, em parte, em relação ao teatro; a peça acaba onde a luta cá fora, o trabalho árduo da emancipação, começa ou pode começar - nesse sentido a peça, o texto e a encenação e o trabalho dos actores móveis/imóveis tem a modéstia de não querer por si só mudar o mundo mas exigir de nós que o façamos.
Escólio B
Lembra-me uma frase do Che Guevara sobre repartir o pouco (que põe a justiça acima de tudo). Mas a questão ética não implica necessariamente capacidade de resposta política (no sentido de transformar as relações entre os homens, acabar com a exploração, etc). Esta depende de outras coisas. Seremos capazes dessas outras coisas? Seremos capazes de tomar nas nossas mãos as (novas e contraditórias) necessidades, seremos capazes de manejar as ferramentas (antigas e modernas) ao nosso dispor, seremos capazes de, com a ana, transformar a sociedade (as relações sociais, o poder), o mundo (o pensamento, o conhecimento, a sensibilidade, a sexualidade, os sonhos, a produção, todos os mundos que o mundo tem) e a vida (a forma de estar no mundo, o quotidiano, os dias e as noites, o tempo “pequeno”, o tempo da nossa própria vida, o amor)?
O sapato
O sapato serve de exemplo - é necessidade que tem de ser interrogada, pode ser ferramenta e talvez o início de um (longo) caminho. Se (re)partirmos descalços (para a luta) arriscamo-nos a ficar com feridas nos pés. Mas isso depende do caminho.
“pois a areia cresceu e a gente em vão requer curvada
o que de fronte erguida já lhe pertencia”
(Ruy Belo, citado no livrinho onde se pode ler o texto de Repartição)
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